Memórias da Ana no sopro do pó
On 24 Julho, 2019 2019 | Do lado de cá Comentários fechados em Memórias da Ana no sopro do pó Etiquetas:tileDas primeiríssimas vezes que falámos, marcou-me o olhar comovido quando entrou na sala que hoje dá o nome a quem tanto a inspirou. Referiu-me as saudades e a nostalgia que se misturavam ao lembrá-lo. Era dezembro e estávamos no Auditório Prof. David Ferreira (Anfiteatro 52), porque era Dia da Investigação, o dia que é sempre organizado pelo GAPIC para celebrar a investigação científica numa Escola de Medicina. Só podia ser criação sua, se pensarmos bem em quem foi ele. Em 1989 nascia das mãos do mestre um dos seus melhores moldes, um Gabinete de Apoio à Investigação Científica.
Registei o olhar comovido e pedi se um dia me contava quem tinha sido esse tão aclamado Professor que lhe causava tanta comoção. Acabada de chegar à Faculdade de Medicina o sentimento de pertença das pessoas pela Instituição ainda não me fazia o mesmo sentido de hoje.
Passou um ano e meio desse nosso primeiro contacto. Dias atrás envio-lhe um mail: “prometo que não te exponho muito, mas o GAPIC faz 30 anos, por favor dá-me o teu olhar sobre o Professor David Ferreira, com quem me disseste ter trabalhado e convivido”. Aceitou na hora e em breve dar-me-ia a conhecer um senhor mais velho, delicado e eloquente, rigoroso e com método bem assente, preocupado com os outros, mas proporcionalmente exigente e intolerante à preguiça e “aos que gostam pouco de trabalhar tirando emprego a quem merecia tê-lo”, palavras do próprio.
Ana Cristina Mota entrou na FMUL há 23 anos, queria encontrar um trabalho que lhe permitisse conciliar com a licenciatura que frequentava.
Na altura, Membro da Comissão Coordenadora do Conselho Cientifico, o Professor David Ferreira pedira nomes, porque precisava de reforçar a sua equipa administrativa, uma secretária e outra pessoa para dar apoio a um novo projeto que borbulhava no seu espírito irrequieto e sábio. Era o Projeto do Pólo das Ciências Morfológicas, financiado pelo Instituto Gulbenkian, que pretendia reunir e mostrar um vasto espólio engolido pelos cerca de 40 anos acumulados e sem especial organização. O espólio precisava de reavaliação do seu estado e só posteriormente seria exibido, com dignidade, ao público e aos alunos, que passariam a contar com mais um espaço de estudo. A pessoa escolhida foi a Ana, como o Professor sempre a chamou.
Ligaram-lhe a dizer que iniciava as suas funções a 1 de abril, ela não quis acreditar, julgou mesmo que podia ser uma mentira característica da data. Depois foi ver para crer e percebeu que ia mesmo entrar para a Faculdade de Medicina. A ela juntava-se outra colaboradora que faria mais secretariado, mas no entanto apoiavam-se o mais possível, na organização do Pólo e apoio ao Professor David Ferreira.
Quando foi o teu primeiro contacto com o Professor David Ferreira?
Ana Cristina Mota: No primeiro dia recebeu-me porque para ele era fundamental dizer-me logo quais as suas necessidades e metas a atingir. Eu tinha de entrar num espaço, onde ainda decorriam aulas, e selecionar todo o espólio que ali houvesse, integrada numa equipa de pessoas que já cá estavam e que me apoiaram muito, a São e a Lurdinhas do Instituto de Anatomia. Mais do que integrar-me e falar das regras, dos objetivos e do que esperava de mim, o Professor prontificou-se logo para me ajudar numa atitude de grande generosidade que lhe era característica, partilhando o que sabia e promovendo o nosso crescimento. Ele selecionava os documentos, ajudava-nos a identificá-los para inventário e orientava na indexação e organização física.
E o que é que encontraste nessa sala?
Ana Cristina Mota: Para além de uma coleção de livro antigo, verdadeiras jóias que entretanto foram integrados na Coleção de Livro Antigo da Área de Biblioteca e Informação, existiam também outros espólios nomeadamente documentos de arquivo, de vários Professores (correspondências, notas pessoais, livros de registos, etc).
Da diversidade de espólios que ali se encontravam, o que me fazia verdadeira confusão eram as peças anatómicas. Eu descia aquelas escadas da Anatomia e até baixava a cabeça. A coleção dos cérebros… Que impressão! Depois tivemos que carregar as peças anatómicas e isso mexeu comigo… Havia fetos, partes do corpo de pessoas que estavam ali conservadas para estudos, mas tinha que ser feito, claro. Até o quadro que agora está na entrada principal da Faculdade foi o Professor que localizou todo enrolado e com fungos. Certo do valor da obra, avançou com o restauro. Hoje quem vê aquele quadro não imagina a sua história. (Ri sozinha e fica parada um pouco) Numa dessas nossas tardes de pesquisas e mais pesquisas, estava mesmo muito calor e imagina… num espaço fechado e cheio de pó, estávamos sempre com máscara na cara. Íamos tirando os livros e eles amontoavam-se, por todo o lado havia caixas e mais caixas para encher. Eu tinha uns sapatos que me estavam a magoar os pés, a minha colega Vanda também. Resolvemos ficar descalças, mas não esperávamos que o Professor aparecesse naquela altura. Apanhou-nos. Disse com um ar sério, “eu não acredito, eu não acredito!”. Ui, fiquei muito nervosa, não tens ideia, e pedi desculpa, disse logo que me ia calçar, que não voltava a acontecer. Depois percebi que a preocupação do Professor era a nossa segurança, porque o chão estava velho, não era tratado, havia risco de nos cortarmos ou apanhar alguma infecção. Marcou-me esse momento, como tantos outros, porque preocupava-se connosco. Lembro-me de lhe dizer que ele tinha que entrar a fazer mais barulho, porque com aqueles sapatos tão leves assustava-nos, dava para “roubar galinhas”. Ele riu e nós suspirámos de alívio no fim.
Mas também já ouvi falar de um David Ferreira com o seu temperamento.
Ana Cristina Mota: Já se sabe que não se pode agradar a todos. Ele era um homem muito humilde, de uma correção que já nem se vê nos dias de hoje. Ele elogiava o nosso trabalho, não diante de nós e entre a nossa equipa, mas entre os seus pares, não imaginas o orgulho que se sente numa coisa dessas. A valorização de uma pessoa é tão importante, encoraja tanto. (Emociona-se) Mas quando era para se trabalhar era uma coisa muito séria. Essa exigência dele fez-me aprender muita coisa, ele ensinou-me o peso da responsabilidade, mas no sentido certo.
Do que descreves fico com a ideia que havia como que um certo paternalismo, pelo menos convosco.
Ana Cristina Mota: Havia mesmo. (Ri) Era uma pessoa mesmo afetuosa… (Fica sem saber bem o que dizer). Mas tinha que se trabalhar! E agora que me fazes recordá-lo, lembro-me de uma frase que me dizia muitas vezes e que na altura nem me fazia muito sentido. Dizia: “os maus funcionários originam que os bons se tornem maus, porque se contagiam uns aos outros”. No começo da minha vida profissional não achava que tivesse qualquer razão, agora entendo-o melhor. Porque tu dás tanto e se a pessoa do teu lado dá menos, ou nada e tem as mesmas regalias que tu, para quê tanto esforço? E assim se destrói uma equipa e um serviço. Mas isto é triste… Destabiliza, mas na verdade nunca comprometeu o meu desempenho.
Conviveste com o Professor quantos anos ainda? Porque acredito que estas conversas mais em forma de conselhos de vida, o Professor não as confiasse muito no imediato.
Ana Cristina Mota: Não, nada. As coisas foram-se conquistando. Olha, não sei se tenho os anos todos presentes, começámos arduamente o nosso trabalho entre 1996 e 1997. Mas rapidamente fomos ganhando um vínculo…havia um espírito de entreajuda que já nem se vê mais hoje. Cada uma tinha a sua área de responsabilidade, mas quando era preciso ir ajudar noutras áreas íamos, da mesma forma que também me ajudavam a mim quando necessário. E depois o Professor, ao nosso lado a dar o exemplo. O Pólo das Ciências Morfológicas foi inaugurado em 1997. Em 1999 nascia o meu filho Gonçalo. Apesar de fazer parte da equipa Reitoral desde 1997, o Professor foi mantendo a gestão do Pólo. Até que considerando o crescimento da Biblioteca e a Jubilação do Professor, fomos integradas na Biblioteca-CDI na altura gerida pela Dr.ª Emília Clamote. Apesar de afastado, continuei a contar com o seu apoio na seleção da documentação e a fazer tratamento de uns quantos livros, para trabalhos e pesquisas que ele fazia, ele não parava. Nessa altura ele já estava doente (evita-me olhar), teve problemas de saúde sérios… Custou-me vê-lo e dizia para mim, “este não é o meu Professor”. Mas apesar de tudo, sempre a trabalhar, sempre disponível. Olha que há familiares por quem não tive tanto afeto como tive pelo Professor.
Descreves-me o Professor David Ferreira fisicamente, como se o tivesses de novo aqui à tua frente?
Ana Cristina Mota: Bem… Uma pessoa sempre muito bem-parecida, mesmo quando apresentava um ar mais cansado… Cabelo grisalho…Usava gravata e apresentava-se sempre bem cuidado (não olha para mim uma única vez, é como se tivesse feito uma viagem no tempo e estivesse de lá a fazer o relato a o futuro). Apesar da idade era muito ativo.
E tinha óculos?
Ana Cristina Mota: Tem!
Não sendo a única forma de se avaliar a emoção em alguém, a Ana chorou várias vezes à minha frente, como se só hoje se estivesse a despedir de David Ferreira, talvez de uma parte do passado.
Do Professor recorda os almoços de “franguinho” assado que comprava para as suas colaboradoras, com elas sentava-se numa cozinha antiga e já muito mal-arranjada e comiam e riam, sem se olharem com hierarquia. Em dias especiais chegou a levá-las ao Antigo Retiro do Quebra-Bilhas no Campo Grande, como forma de agradecimento do tanto que trabalharam e porque não as podia aumentar, melhorar o regime contratual, ou agradecer de outra forma.
Um dia, por engano, ao ouvir o seu nome na voz de David Ferreira, “Ana, ouça lá” “sim pai, diga”, respondeu-lhe por instinto. Foi então que o Professor lhe disse, que não se importaria nada de ter sido pai da Ana, mas que talvez o pai verdadeiro não achasse graça. Apesar do sentido de humor, a correção era a primazia da conduta do grande mestre da investigação. À Ana, diz-me, David Ferreira só a chamou à razão uma vez na vida, quando era rígido era mesmo para ficar vincado como regra, mas sem espetadores, sem espalhafato.
Ainda hoje guarda, gravado na memória do telefone, o número do Professor, não o consegue apagar, é o que lhe sobra dele. E esse número chegou a ligar para a Ana Cristina, já o Professor David tinha morrido, mas era o seu filho que ligava a Ana Cristina Mota para dar uma informação. Talvez tenha tido um resto de esperança que David Ferreira fizesse parte dos imortais, mas o certo é que não o voltou a ver, nem o telefone voltou a tocar. Afinal fora embora de vez…
Dele guarda ainda a mensagem gravada na fita de finalistas que foi, orgulhosamente, preenchida pelo Professor para a lutadora Ana que trabalhou de dia e estudou à noite até se formar.
Ana Cristina Mota é o caso da boa filha que à casa torna, depois de ter feito parte da organização da biblioteca do Pólo e da equipa da Biblioteca-CDI, passou por outra área e hoje aguarda o regresso à Biblioteca para dar continuidade a um percurso iniciado há 18 anos. Será como regressar a um espaço que afinal sempre lhe pertenceu um pouco, apenas tem mais novidades, remodelações e novos colegas, entre eles uma Chefe de Divisão que pessoalmente também admira, Susana Henriques. Nestes 23 anos que por ela atravessaram, a Cristina diz que ponderou concorrer para outra Biblioteca da Universidade de Lisboa, mas como há cortes de cordão umbilical que nunca se conseguem fazer, a Cristina recuou encontrando o caminho certo, dentro da sua casa de sempre. Terá sido sopro do passado vindo dos livros tão admirados pelo mestre de todos? É a ele que deve a escolha do curso em Ciências da Informação e da Documentação, mas percebeu que é também a ele que deve parte do que hoje é. David Ferreira é a quem agradece, por ser o seu orientador profissional, moldando o seu destino e boa parte dos valores que ainda hoje pratica.
E de tantos outros que poderíamos ter começado aqui a contar as suas histórias.
Joana Sousa
Equipa Editorial