Vera Mendonça – sobre a radioterapia no cancro da mama
On 30 Outubro, 2018 2018 | Sabia que? Comentários fechados em Vera Mendonça – sobre a radioterapia no cancro da mama No tagsDe rosto empático sai de um gabinete de um dos corredores do Hospital de Santa Maria onde ninguém quer andar, o corredor da Radioterapia.
O que tem de reservada tem igualmente de dócil. Vera Mendonça hoje em dia médica especialista em Radioterapia diz que é “filha desta casa”, estudou na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e ficou por Santa Maria onde se foi especializando. Ainda enquanto aluna interna e recém mãe de gémeos, os primeiros 2 de um total de 6 filhos, e na altura no segundo ano de internato geral, escolheu Pneumologia, mas a experiência nas urgências internas rápido lhe mostraram que não era por ali o seu caminho. Foi em conversa com duas das suas grandes amigas que lhe nasceu a curiosidade de ir conhecer melhor a Radioterapia. Um serviço que se apresentava sem urgências centrais, muito inovador tecnologicamente e pelos horários mais estáveis para quem acumulava também o papel de mãe, foi a decisão que diz ter sido a certa.
Foi então que conheceu a sua tutora Marília Jorge que sempre se dedicara ao cancro da mama e à Ginecologia, quis manter-se ao seu lado e pela Patologia e assim está há 8 anos.
Um dia por semana faz urgências, das 08h às 21h, aí recebem os doentes do hospital e das áreas de referenciação e tratam principalmente de 3 situações clínicas, síndrome da veia cava (obstrução do fluxo sanguíneo da veia cava superior no coração), hemorragias (que estanca com a radioterapia) e compressões medulares (lesões e doenças que fazem pressão na medula espinhal). O seu papel é decidir que dose de radiação administrar a iniciar nas 24-48h, dose única ou fracionada em alguns dias (com redução da dose por fração).
O que nos juntou para conversar foi o tema do cancro da mama e o que acontece a uma mulher que tem de fazer radioterapia. Fomos à procura de perguntas simples para quem se confronta pela primeira vez com uma má notícia e percebemos que quando se abrem portas com respostas, tudo se torna menos negro.
Desmistifique-nos o que é a radioterapia.
Vera Mendonça: É uma das modalidades terapêuticas que se utiliza para o tratamento do cancro. Cerca de 50% da doença oncológica atualmente é tratada com radioterapia. Este tratamento é associado à cirurgia, como terapêutica única, ou associado à cirurgia e quimioterapia.
E como é que se aplica a radioterapia?
Vera Mendonça: É feita através de uma máquina que é um acelerador linear, um dos seus grandes avanços tecnológicos foi a substituição da bomba de cobalto pelos aceleradores lineares e foi a partir daí, em meados dos anos 90 que se conseguiu fazer a radioterapia em 3D; isto porque o planeamento do tratamento passou a ser feito por TAC (nalguns Centros realiza-se por RMN ou por PET – Tomografia por Emissão de Positrões, técnica de imagem médica nuclear que utiliza moléculas que incluem um componente radioativo). O avanço nas técnicas de imagem permitiu também melhorar no planeamento do tratamento o que é uma grande vantagem porque assim conseguimos irradiar melhor o nosso órgão alvo e avaliar as doses de radiação que chegam aos órgãos de risco precisamente porque os desenhamos individualmente.
Quando fazemos um tratamento que tem radiações nós estamos matar células más, é óbvio, mas também estamos a atingir células saudáveis. Entre os pratos da balança continua a ser mais equilibrado matar as células más, mesmo que se atinjam outras boas?
Vera Mendonça: Sim sem dúvida, até porque a radiobiologia dos tratamentos com radiação assim o permite, as “células saudáveis” conseguem recuperar porque a radiação atua numa fase do ciclo celular em que as células malignas não conseguem recuperar do dano que é feito no DNA e as benignas conseguem. E é por isso que os tratamentos são fracionados e não damos a dose total de radiação num só dia (com algumas exceções) vamos dividindo a radiação em várias frações diárias, para que nos intervalos, as células consigam recuperar. Tratamos 5 dias, descansamos 2. Este intervalo é muito importante para recuperar do dano.
Sabemos que há danos colaterais nas células, mas isso é por dentro. E por fora, o que acontece ao doente que é sujeito à radioterapia?
Vera Mendonça: Ficam mais cansadas e isso é geral para todo o doente que recebe radiação. Em termos fisiopatológicos não há razão nenhuma específica. Talvez a questão de irem e virem todos os dias seja desgastante, como são tratamentos curativos. A dose total é dividida por pequenas frações por dia, mas têm de vir todos os dias úteis. Atualmente temos uns esquemas de tratamento para a mama mais condensados e que têm a mesma eficácia, em termos de controlo local e de resultado cosmético, e assim em vez de termos doentes em tratamento 5 e 6 semanas, temos 3 a 4 semanas, o que significa que aumentamos ligeiramente a dose por fração. Claro que tudo isto foi estudado e confirmado. Mas é importante dizer que mesmo estas senhoras que fazem tratamento apenas estas 3 semanas referem, também, cansaço. Agora, de acordo com a toxicidade, e de acordo com a área que estamos a tratar, esta vai-se manifestando à medida que as semanas vão passando; no caso da mama, a pele vai ficando progressivamente mais avermelhada e eventualmente pode acontecer fazerem uma ferida. O grau de toxicidade depende do tipo de pele, da hidratação, da adesão aos cuidados solicitados, das terapêuticas prévias realizadas, das co morbilidades. São formas de se minimizar a toxicidade cutânea e que é a única que a doente consegue ver. A toxicidade pulmonar ou a cardíaca nós não a vemos, só a detetamos e diagnosticamos quando há queixas.
Mas não havendo queixas óbvias, não vão tentar fazer exames para despistar lesões colaterais, é isso?
Vera Mendonça: É isso, se não tivermos queixas não fazemos outros exames para avaliar a toxicidade à volta. Em relação à toxicidade crónica cardíaca estão a ser desenvolvidas recomendações internacionais para seguimento em follow-up das doentes irradiadas à mama esquerda.
As pacientes seguem à risca as recomendações que recebem?
Vera Mendonça: Quase sempre, no verão é um pouco pior.
No verão? Porquê?
Vera Mendonça: Está relacionado com a roupa, porque não convém usar o soutien em cima da pele que está a ser irradiada diariamente. Deveriam usar sempre uma camisola de algodão por baixo do próprio soutien para minimizar o risco de ferida, os elásticos, as rendas, tudo isso pode aumentar os riscos de ferida. Com o calor as pacientes sentem mais reticência em aderir a esta recomendação e como tal temos mais toxicidade grau 2, talvez por haver menos cuidados. Já no inverno ficam maioritariamente com toxicidade grau 1, o mesmo que dizer que é um eritema na mama, edema ou prurido.
Consegue-se traçar um perfil de mulher com cancro da mama?
Vera Mendonça: É interessante essa pergunta porque esse é um tema que debatemos com os oncologistas. Claro que há exceções, mas eu acho que todos os doentes oncológicos têm um determinado perfil psicológico, as doentes com tumor de mama também têm um perfil, habitualmente são mais ansiosas, algumas mais deprimidas, são geralmente mulheres mais stressadas. Atenção que isto não é um rótulo, nem tem nenhuma evidência comprovada, mas sim a nossa perceção da amostra que tratamos anualmente.
Será que isso pode acelerar um processo de doença?
Vera Mendonça: Mulheres que passaram por situações traumáticas e que isso lhes causou danos emocionais, pode afetar na doença, porque afeta a sua parte imunológica. Agora, claro que todos temos um perfil genético e isso condiciona-nos mais para uma ou outra doença. E quando todos os fatores se reúnem, os intrínsecos e os extrínsecos entram em “sintonia” e se conjugam, é quando a doença se manifesta. Como tal acredito que nalguns casos poderá ser um evento da vida que acabe por desencadear a doença. Sabe que todas estas mulheres nos falam muito nisso, que acham que viveram situações stressantes de família, ou no trabalho e que possam ter sido as responsáveis pelo desencadear da doença. E muitas, algumas que ainda são muito novas têm 30/40 anos e têm cancro da mama, dizem “eu sempre fui saudável, não fumo, não bebo, até faço exercício físico, porque é que isto me aconteceu?”.
E porque é que isso lhes aconteceu?
Vera Mendonça: Eu acho que ninguém consegue responder. Porque há o cancro genético e o que não é genético e a maior parte do cancro não é genético; a doença acontece quando todos os fatores se reúnem os extrínsecos e os intrínsecos à pessoa. Segundo a literatura será uma questão multifatorial.
Se não é genético vale então a pena continuar a fazer prevenção?
Vera Mendonça: Claro, porque quanto mais precocemente o detetarmos, melhor será o prognóstico. É diferente detetar um tumor num estadio 1, ou num estadio 3 porque isso tem grande impacto na sobrevida.
Mas nos exames de prevenção não recebemos sinais do corpo a dizer “atenção que isto pode indiciar a doença”?
Vera Mendonça: Não conseguimos. Não somos capazes de prever.
Um cancro da mama numa mulher de 80 anos pode ser tão agressivo quanto o de uma de 40? Ou porque o metabolismo desacelera, as células cancerígenas também o fazem?
Vera Mendonça: Tem a ver com a biologia do tumor. Ocasionalmente temos tido doentes com mais de 80 anos com tumor na mama e um perfil biológico agressivo. O problema é que como muitas têm várias co morbilidades (quantificação de várias doenças), já nos impede de fazer todas as modalidades terapêuticas. Como tratamento temos a radioterapia, a cirurgia e a hormonoterapia (a quimioterapia e a imunoterapia tem lugar em casos selecionados), nas mulheres que são hormono-dependentes e que têm melhor prognóstico; no perfil triplo negativo temos menos opções terapêuticas. Temos de adaptar o tratamento ao doente que se nos apresenta.
Bem sei que é médica e que está habituada a lidar todos os dias com esta realidade, mas também é mulher. Confronta-se com esta doença como mulher, ou consegue colocar um filtro e não deixa que estes temas a toquem?
Vera Mendonça À medida que o tempo vai passando nós vamos conseguindo pôr-nos mais de parte, mas ao mesmo tempo temos uma ligação diferente com a doente. Eu consigo abstrair-me da doença mas ao mesmo tempo coloco-me no lugar da doente. Tento compreender o que ela sente e estabelecer também uma relação emocional. Para conseguirmos mais delas, também temos que lhes dar mais. As doentes de cancro da mama precisam, emocionalmente, de ser tocadas para também corresponderem mais ao que lhes pedimos em seguida. A radiação assusta mas, bem esclarecidas, fazem o tratamento mais calmas e menos receosas da toxicidade.
A radioterapia pode ainda ter mais avanços?
Vera Mendonça: Sem dúvida, as técnicas de imagem estão sempre a evoluir e cada vez que o fazem oferecem-se mais possibilidades ao doente. O planeamento associado à evolução tecnológica do tratamento tem sido espetacular.
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Afinal andar nos corredores de um Hospital tão vasto como Santa Maria pode não ser o terror que criamos no nosso imaginário, como se fossemos crianças aterrorizadas no escuro e perante o desconhecido.
Confiar no médico que temos diante de nós e nos avanços da terapêutica e das tecnologias pode ser a segunda ferramenta mais importante para vencer uma doença como o cancro da mama.
Porque a primeira de todas é a confiança interior que cada mulher deve agarrar e não querer largar, jamais.
E se no meio do percurso mais acidentado onde recebe a notícia de um cancro, se mesmo assim, puder encontrar uma médica como a Vera Mendonça, então tem tudo para dar mais certo.
Joana Sousa
Equipa Editorial